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Compliance público: o controle interno preventivo da probidade na administração

Publicado em: 19/06/2020 14:06

Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Guilherme Pupe da Nóbrega

Já é uma realidade há algum tempo a importância das políticas de conformidade no âmbito privado. Desenvolvida com maior vigor a partir do segmento financeiro, a autorregulação se projetou como instrumento natural de segurança e maior confiabilidade para os stakeholders e como uma resposta ao implacável crivo exercido por agentes reguladores e pelo mercado de capitais.

A simbiose entre dimensões pública e privada favoreceria, com o tempo, a assimilação pela administração de boas práticas implementadas por particulares. Gradativamente, o controle preventivo interno clássico, propiciado pela tutela (supervisão ministerial), pela hierarquia e pelo poder disciplinar exigiriam maior sofisticação: a eficiência como princípio constitucional não haveria de subordinar somente a atividade fim administrativa, mas também atividades-meio, interna corporisintra muros.

Marco normativo que pode ser considerado inicial dessa caminhada, o Decreto 5.678/2006 internalizou a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, pautando-se nos “princípios de devida gestão dos assuntos e dos bens públicos, equidade, responsabilidade e igualdade perante a lei, assim como a necessidade de salvaguardar a integridade e fomentar uma cultura de rechaço à corrupção”. Dali em diante, a personalidade jurídica de direito privado favoreceu que essa contaminação positiva das políticas de conformidade se iniciasse pela administração indireta.

A edição do Guia de Implantação de Programa de Integridade em Empresas Estatais[1] pela Controladoria-Geral da União, em 2015, representaria um importante avanço, imediatamente seguido pela Lei 13.303/2016 (Estatuto das Estatais), da qual merecem ser colhidos o artigo 8º, VII, prevendo políticas de transações obedientes à conformidade; o artigo 9º, parágrafo 1º, dispondo sobre a necessária edição de um Código de Conduta e Integridade, com instâncias, canais, sanções e treinamentos; e o artigo 10, versando sobre a obrigatoriedade de criação de um comitê de conformidade do processo de indicação e avaliação de membros para o Conselho de Administração.

Ainda no âmbito da administração indireta, mas passando à personalidade jurídica de direito público, as agências reguladoras, mercê de sua interação frequente com segmentos privados, seriam também influenciadas, convindo o destaque do artigo 3º, parágrafo 3º, da Lei 13.848/2019, a impor a adoção de programa de integridade por aquelas entidades.

Na administração direta, de sua vez, em que pese todo um microssistema de controle já ser formado pelas leis 4.717/1965, 8.429/1992, 8.666/1993, 12.527/2011 e 12.813/2013; pela Lei Complementar 101/2000; e pelos decretos 1.171/1994 e 5.480/2005[2], foi igualmente percebida uma carência, do ponto de vista da governança, de uma estruturação mais sólida nos moldes de políticas de conformidade e de integridade.

Novamente a CGU empreendeu iniciativa louvável ao editar, em 2013, o Manual de Integridade Pública e Fortalecimento da Gestão Orientações para o Gestor Municipal[3]. Posteriormente, em 2015, perseverando na proatividade institucional, o órgão produziria o Guia de Integridade Pública[4] — alcançando também autarquias e fundações —, com o escopo de “chamar a atenção dos gestores públicos sobre questões que devem ser discutidas e implementadas com o intuito de mitigar a ocorrência de corrupção e desvios éticos no âmbito de seu órgão ou entidade.”

Em 2017, sobreviria o Decreto 9.203/2017, dispondo sobre a política de governança da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Da referida norma constou, em seu artigo 19, a obrigatoriedade de instituição, por órgãos e entidades, de programa de integridade com o “objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção”, observando como eixos o comprometimento e o apoio da alta administração; existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade; análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; e monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade.

Cumprindo com a exigência prevista no artigo 20 daquele mesmo decreto, a CGU elaboraria os Guias Práticos (i) de Implementação de Programa de Integridade Pública[5]; (ii) das Unidades de Gestão de Integridade[6]; e (iii) de Gestão de Riscos para a Integridade[7]; além de editar, para estruturação, execução e monitoramento dos programas, a Portaria CGU 1.089, de 25 de abril de 2018, posteriormente revogada tacitamente pela Portaria CGU nº 57, de 04 de janeiro de 2019.

O impulso não foi ao acaso, não tardando que, em sintonia com esses documentos, órgãos e entidades como o Ministério da Justiça e da Segurança Pública[8], o Comando da Aeronáutica[9], a Capes[10], a Agência Nacional de Águas[11] e a Advocacia-Geral da União[12], entre tantos outros[13], enunciassem seus próprios programas, voltados para suas particularidades e vulnerabilidades.

Estavam definitivamente lançadas as bases do compliance público, assim entendido “o programa normativo de integridade ou conformidade elaborado pelos órgãos e entidades da Administração Pública que, abarcando um conjunto de mecanismos e procedimentos setoriais” destinados a “promover uma eficaz, eficiente e efetiva análise e gestão de riscos decorrentes da implementação, monitoramento e execução das políticas públicas.”[14]

Esse passo evolutivo na governança pública não deve ser subestimado, anunciando um verdadeiro subsistema jurídico de integridade voltado para uma otimização da gestão de riscos, de políticas públicas e de transparência de informações, uma busca constante e obsessiva pela legitimação social e por prevenção, pronta identificação e imediato endereçamentos de eventuais falhas. Ao assim proceder, o poder público, em suas práticas internas de consecução do interesse público, já estará, intrinsecamente, resguardando o próprio interesse público que persegue, sendo absolutamente saudável, nessa senda, o diálogo normativo proposto pelo artigo 23-A do Projeto de Lei n. 10.887/2018.[15]

[1] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/guia_estatais_final.pdf

[2] Cfr.: ACOCELLA, Jéssica; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. “Compliance na Administração Pública”. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/307120/compliance-na-administracao-publica

[3] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/manualintegridade2013.pdf

[4] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/guia-de-integridade-publica.pdf

[5] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/integridade-2018.pdf

[6] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/unidades-de-gestao.pdf

[7] https://www.gov.br/cgu/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/manual-gestao-de-riscos.pdf

[8] A Portaria MJSP nº 86, de 2019, define o modelo de governança e institui o Sistema de Governança Corporativa do MJSP, na qual, em seus anexos, cria o programa de integridade e a respectiva Comissão Executiva; a Portaria MJ nº 1.660, de 2012, cria a Comissão de Ética do MJSP; as Portarias MJSP n° 430 e 431, de 2019, respectivamente, disciplina os procedimentos a serem adotados para impedir o nepotismo e regulamenta a consulta sobre conflito de interesse, no âmbito do MJSP. Além daqueles atos normativos, o Decreto n° 9.662, de 2019, aprovou a estrutura regimental do Ministério, da qual fazem parte todas as unidades envolvidas no Programa de Integridade.

[9] https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/41722

[10] https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/41718

[11] https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/41715

[12] https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/41714

[13] https://repositorio.cgu.gov.br/handle/1/34719

[14] MESQUITA, C. B. C. de. O que é compliance público? Partindo para uma Teoria Jurídica da Regulação a partir da Portaria nº 1.089 (25 de abril de 2018) da Controladoria-Geral da União (CGU). Revista de Direito Setorial e Regulatório, Brasília, v. 5, n. 1, p. 150, maio 2019.

[15] Art. 23-A. A presente lei estabelece mecanismos de prevenção, repressão e educação destinadas a todos aqueles que, diretamente ou indiretamente, atuem no exercício da função pública. § 1º Além dos princípios estabelecidos na Constituição, todos aqueles que atuem no exercício da função pública devem guardar respeito aos princípios da transparência, integridade e responsabilidade na prestação de contas. § 2º É dever do Poder Público oferecer contínua capacitação aos agentes públicos e políticos que atuem com prevenção ou repressão de atos de improbidade administrativa.

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Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

Guilherme Pupe da Nóbrega é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

Revista Consultor Jurídico, 19 de junho de 2020, 11h33

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