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Pesquisa utiliza Big Data para identificar relações causais entre doenças infecciosas nas mães e saúde dos bebês

Publicado em: 24/03/2021 22:03
Pesquisa coordenada por bolsista do CNPq mostra os impactos de doenças infecciosas como dengue, sífilis e tuberculose durante a gravidez
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Os impactos de doenças infecciosas como dengue, sífilis e tuberculose durante a gravidez podem ser transitórios para as mães, mas têm possibilidade de afetar de forma duradoura as crianças, conforme mostra pesquisa coordenada pelo professor Rudi Rocha, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, professor da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). O estudo cruzou dados fornecidos por bases do Datasus, incluindo o SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade), o SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) e o SINASC (Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos), com informações de georreferenciamento que indicaram dados residenciais das mães na época dos nascimentos dos bebês. A pesquisa permitiu a análise epidemiológica e a avaliação do impacto de políticas públicas sobre a população da cidade do Rio de Janeiro, entre os anos 2000 a 2017.

A análise dos padrões geográfico e temporal das três doenças no Rio, e de como essas enfermidades, com formas distintas de infecção, podem afetar mães e bebês, resultou na confecção de diversos mapas relevantes para serem utilizados nas decisões de políticas públicas. Os pesquisadores concluíram que as infecções das mães por dengue estão relacionadas a aumento significativo na prematuridade das crianças; a infecção por tuberculose durante a gestação se encontra associada à elevação expressiva de prematuridade e de baixo peso ao nascer; e a sífilis, por sua vez, está ligada ao crescimento na probabilidade de óbito fetal e infantil, bem como ao baixo peso ao nascer. A equipe de pesquisa verificou que, em geral, os efeitos da infecção por alguma dessas doenças são maiores para as gestantes residentes em setores censitários mais vulneráveis e com renda mais baixa.

O uso do georreferenciamento permitiu aos pesquisadores elaborar mapas que demonstram diferenças das três doenças pesquisadas sobre as gestantes e o óbito infantil entre as regiões da cidade do Rio de Janeiro. A combinação dos efeitos adversos da dengue, da sífilis e da tuberculose com seus resultados posteriores são ainda mais localizados no âmbito da cidade do Rio do que a incidência das doenças. A porcentagem de mulheres infectadas durante a gravidez e a taxa de mortalidade infantil de menores de um ano dos nascidos de mães infectadas mostraram ser heterogêneos para as três doenças. Apesar de a incidência das doenças variar de acordo com as regiões da cidade, de maneira geral, a sífilis foi a que teve maior incidência registrada. Para os pesquisadores envolvidos no estudo, a integração dos sistemas de informação de saúde pode levar à vigilância da incidência dessas doenças em tempo real e ajudar na eficácia de resposta governamental no tocante a medidas protetivas, além de mitigar a transmissão vertical dessas enfermidades. O mapeamento mais preciso das doenças pesquisadas entre as regiões da cidade, por seu turno, pode ser uma maneira efetiva de se vigiar e de se conter uma infecção.

Para o coordenador da pesquisa, professor Rudi Rocha, esse tipo de pesquisa fornece evidências relevantes sobre o impacto na saúde infantil de doenças infecciosas a que as mães foram acometidas durante a gestação. Esses dados eram pouco conhecidos até então.  “O primeiro conjunto de evidências nos mostra como o mapa de infecção pode ser diferente do mapa de resultados adversos, dada a infecção”, afirma o professor Rudi Rocha, citando como exemplo o mapa de sífilis materna, que é distinto do mapa da probabilidade de óbito infantil, dada a infecção da mãe. Para ele, essas informações são fundamentais para o desenho e para a implementação de políticas públicas. “O segundo conjunto de evidências nos mostra que cada doença tem impactos sobre diferentes indicadores de desfecho, e que o acesso à atenção primária muitas vezes consegue mitigar os efeitos adversos”, completa o professor.

A pesquisa foi inovadora por avaliar um conjunto extenso de indicadores e por estimar os impactos de mitigação ou de proteção das políticas públicas em saúde. O propósito da pesquisa era o de fornecer novas evidências sobre os possíveis danos ao desenvolvimento de crianças, devido à exposição delas a surtos de infecção quando ainda no útero materno. O uso de dados geocodificados e de informações administrativas sobre a implementação de novos centros de atenção primária contribuiu para os pesquisadores estimarem até que ponto esses benefícios atenuam os impactos nos bebês dos problemas de saúde das mães, causados por doenças infecciosas durante a gestação.

A pesquisa se desenrolou em quatro etapas. Na primeira delas, foram refinados e ligados dados administrativos das bases do Datasus – SIM, SINASC e SINAN – para a população da cidade. Os pesquisadores consideraram registros de nascimento fornecidos pelo SINASC, contendo peso ao nascer, escores APGAR, duração da gestação, número de consultas no pré-natal, tipo de parto e características individuais da mãe, como idade, escolaridade e local de residência. O estudo compreendeu, ademais, o levantamento de registros de óbito, fornecidos pelo SIM-Datasus, com dados administrativos de mortalidade por Classificação Internacional de Doença (CID), horário do óbito e local de residência da mãe, no caso do óbito infantil. Esses dados podem ser utilizados para rastrear as variáveis de saúde das crianças nos primeiros anos de vida. Os pesquisadores também trabalharam com dados do SINAN-Datasus sobre número de casos de doenças infecciosas relatadas, por tipo de doença e momento dos primeiros sintomas. O estudo envolveu, ainda, o censo das unidades de saúde, incluindo unidades básicas de saúde e de hospitais (públicos e privados), por data de implantação e localização exata no país, coberto pelo CNES-Datasus. Essas informações forneceram variáveis como o acesso das mães a estabelecimentos de atenção primária à saúde.

Em uma segunda fase, os pesquisadores desenvolveram modelos epidemiológicos de difusão de doenças infecciosas, com foco sobre a dengue, a sífilis e a tuberculose. Embora tenham aplicado esses modelos em versões preliminares na avaliação sobre a saúde infantil de impacto das doenças infecciosas durante a gestação, os pesquisadores ressaltaram que, por contar com dados de apenas um estado para doenças mais recentes, não puderam contar com variação suficiente para motivar modelos de difusão. Como alternativa, eles consideraram modelos econométricos, que mostraram resultados mais estáveis. Em uma terceira etapa, os pesquisadores analisaram os dados e desenvolveram métodos mais robustos. Na quarta e última etapa, eles escreveram artigo, a ser submetido a publicação científica especializada.

Os pesquisadores escolheram a cidade do Rio de Janeiro para a pesquisa  devido as suas características geográficas e socioeconômicas, bem como às inovações estabelecidas nas políticas públicas de saúde desde 2009. Problemas decorrentes de enfermidades ainda são desafios para a cidade. Com mais de seis milhões de habitantes, espalhados de forma desigual em pouco mais de 1,2 mil quilômetros quadrados, a cidade do Rio tem 163 bairros, organizados em quatro áreas administrativas (Sul, Norte, Oeste e Centro) e uma das maiores desigualdades socioeconômicas e de saúde no país, com 1,39 milhões de pessoas morando em favelas, de acordo com dados do Censo de 2010, utilizado na pesquisa. A zona Norte concentra 42% dos habitantes, em uma das zonas de densidade populacional mais alta, com 10,18 habitantes por quilômetro quadrado. Junto com a zona Oeste, a Norte apresenta os piores indicadores socioeconômicos da cidade. A taxa de pobreza nas duas zonas é de 23%, enquanto na zona Sul, onde a renda per capita é quase três vezes mais alta, esse índice é de apenas 12%. Além disso, há desigualdades severas no âmbito das próprias regiões. Embora estejam em duas zonas geográficas adjacentes na zona Sul, a Gávea e a Rocinha, por exemplo, registram diferentes dados. Comparados aos da Gávea, os moradores da Rocinha têm renda 10 vezes menor, expectativa de vida inferior em 13 anos e taxa de alfabetização 11% mais baixa do que a de 98,08% registrada para os habitantes da Gávea.

A pesquisa sobre doenças como a dengue, a sífilis e a tuberculose se justificou por essas enfermidades se encontrarem em alta na cidade e por terem sua difusão ligada a algumas características locais. Até 2009, o Rio de Janeiro apresentava os menores investimentos públicos entre as capitais brasileiras na área da saúde, tendo 83% do orçamento municipal para a saúde alocados para grandes hospitais. Faltava, ademais, número suficiente de especialistas em medicina da família. Em dezembro de 2008, o Rio de Janeiro possuía 126 equipes de saúde para a família, o que cobria apenas 7,1% de sua população e, portanto, não atingia o objetivo para o qual o Programa de Saúde da Família foi criado. O governo federal estabeleceu o programa em 1994 para alcançar a cobertura de saúde universal, focando na prevenção e na expansão dos serviços básicos de saúde. Em meados dos anos 2000, a cobertura do Programa no Brasil já alcançava 50% da população, número quase oito vezes maior do que o registrado na cidade do Rio de Janeiro, onde a reestruturação do sistema público de saúde ocorreu apenas a partir de 2009. Nesse período, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio melhorou a infraestrutura dos postos de saúde existentes e ampliou seu número de profissionais; construíram-se novas unidades de saúde, conhecidas como Clínica da Família; e o número de equipes direcionadas para a saúde da família cresceu, chegando à cobertura de 61,7% em 2018.

Apesar disso, a cidade do Rio de Janeiro ainda precisa lidar com uma das mais altas taxas de sífilis do Brasil. O país registra uma alta para três tipos de sífilis: a adquirida, que pode ser transmitida de uma pessoa para a outra durante o sexo sem preservativo ou por transfusão de sangue; a congênita, que acontece quando a mãe infectada passa a doença para a criança durante a gestação ou o parto; e a gestacional, que pode ter graves efeitos adversos, desde abortos até recém-nascidos vivos que podem manifestar seqüelas diversas da doença até os dois anos de idade. Na cidade do Rio de Janeiro, a taxa de sífilis congênita chega a ser de três a quatro vezes maior do que a média nacional, enquanto esses números para a sífilis gestacional e para a adquirida são, respectivamente 3 e 1,3 vezes maiores do que a média brasileira. Entre 2009 e 2012, as mortes decorrentes de sífilis congênita em crianças menores de um ano de idade no Rio foram maiores do que a média do país. Em 2010, essa razão alcançou 7,7 mortes por 100 mil nascidos vivos na cidade. No Brasil, no mesmo ano, essa média ficou em 3,1.

Ademais, a cidade do Rio de Janeiro tem experimentado altas taxas de tuberculose e de dengue. Em 2008 e 2012, as porcentagens de casos de dengue no Rio registradas foram de respectivos 20% e 23,7%, do total de casos no país. A cidade contou um total de 19,4% de mortes por dengue ou por dengue hemorrágica no cenário nacional, entre os anos 2000 e 2008. O Rio de Janeiro também foi a cidade que mais contribuiu com taxas de tuberculose, que entre 2001 e 2018 concentraram 9,2% dos casos confirmados no Brasil. Com isso, a cidade ultrapassou São Paulo, que tem população aproximadamente 1,8 vezes maior. As mortes por tuberculose no Rio, segundo registros do Ministério da Saúde de 2020, responderam por 7,8% do total de mortes pela doença registradas a nível nacional. Causada pela Mycobacterium tuberculosis e transmitida pela pessoa infectada pelo ar, a tuberculose é mais passível de ser desencadeada em zonas populosas.

As infecções são a principal causa da mortalidade materna no mundo, apresentando maiores taxas de estimativa em países de renda baixa e média. De acordo com avaliações globais para incidência de doenças, a sepse materna e outras infecções relacionadas à gravidez responderam por quase 12 milhões de casos em 2017, o que correspondeu 1 óbito a cada 11 nascidos vivos no mundo. As doenças infecciosas maternas podem afetar o desenvolvimento das crianças de modo duradouro, mesmo quando as mães são curadas. As consequências da invasão de microorganismos na corrente sanguínea da mãe podem causar infecção na placenta sem infectar o feto ou infectá-lo de modo direto. A infecção vertical pode levar a conseqüências graves no desenvolvimento do bebê ainda no útero. Mesmo que a infecção fetal e a da placenta não tenham ocorrido, há ainda chances de danos ao crescimento do feto e do desenvolvimento de anomalias. Mesmo crianças que nascem aparentemente saudáveis, mas foram expostas a condições adversas ainda no útero, podem apresentar doenças mais tarde.

Embora existam diversas pesquisas clínicas sobre como as infecções podem afetar a saúde materna e a infantil, e as conseqüências para o bebê no longo prazo, ainda há pouca evidência causal conectando de forma direta a exposição do feto a infecções e a saúde infantil. O histórico infeccioso das mães é com freqüência ignorado com resultados de doenças em crianças após o nascimento. O fato é notado em especial em países de rendas baixas a médias, onde essas estatísticas são raras. Dados sobre o status socioeconômico e o acesso ao sistema de saúde, em particular ao básico, são ainda mais difíceis de serem encontrados e, dessa forma, podem minimizar possíveis impactos dessa situação.

A pesquisa coordenada pelo professor Rudi Rocha foi financiada no âmbito da Grand Challenges Explorations, uma chamada conjunta, resultado de parceria firmada entre o CNPq, o Ministério da Saúde (MS), o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (CONFAP), as Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs) e a Fundação Bill & Melinda Gates (FBMG). A Chamada foi parte de iniciativa criada pela Fundação Gates em 2010, para a integração do conhecimento na área de nascimento, crescimento e desenvolvimento saudáveis. O principal objetivo era o de se utilizar as ferramentas de ciência de dados para o desenvolvimento de ferramentas que permitissem a compreensão dos fatores de risco que contribuem para desfechos inadequados em partos prematuros, crescimento infantil incerto e desenvolvimento neurocognitivo comprometido.

Por meio da Grand Challenges Explorations Brasil, os parceiros da Chamada compartilharam do objetivo de apostar e de investir na crescente experiência do Brasil em ciência de dados, epidemiologia e em saúde pública, para enfrentar os principais problemas em saúde materno-infantil de nosso tempo. O tema da edição da chamada foi “Ciência de dados para melhorar a saúde materno-infantil do Brasil”. A Chamada buscou propostas inovadoras que usassem ciência de dados e modelagens para entender os principais fatores que impactam a saúde materna e o desenvolvimento infantil no Brasil. A ideia era que os projetos financiados ajudassem os gestores a definir melhores políticas públicas e intervenções nessa área. Também participaram do projeto com o professor Rudi Rocha os pesquisadores Thiago Tachibana, da Fundação Getúlio Vargas/São Paulo, Escola de Economia; Marcela Camargo, da Fundação Getúlio Vargas/São Paulo;  Luís Alvarez, do Instituto de Matemática e Estatística, da Universidade de São Paulo (USP) e Sonia Bhalotra, da Universidade de Essex, no Reino Unido, especialista em saúde e questões de gênero. O professor Rudi e a professora Sonia são coautores de vários projetos.

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